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  • sexta-feira, 20 de julho de 2012

    MAGLIANI

    Visceralidade. Fico refletindo sobre esta palavra enquanto me debruço sobre as imagens que pouco a pouco são apresentadas à minha frente. São retratos. Não, não são retratos, são imagens do trabalho de Magliani: parecem retratos, apenas. E o que são?São pinturas e gravuras em preto e branco. Mas podem ser vistos, também, como seres deslocados, fora de seu lugar, que se juntam a coisas perdidas no meio do caminho. Bules/rostos; pano torcido/cara; objeto/pessoa. A gente vai se enchendo de coisas e as coisas estão cheias da gente. Ou, estão cheias de gente. Não é uma questão de similitude de forma. São agrupamentos quase surrealistas entre materialidades distintas.Ou colagens absurdas que só se conformam pra nos dizer sobre a inconformidade.

    Preto no branco. Branco no preto. Magliani é mestiça. Negra e branca. Magliani é italiana. Magliani é brasileira. Magliani, mulher, gaucha. Pergunto sobre as cores. Eladiz que as experiências com cores são como um hiato na história da obra dela. Ela quer a contração e a expansão máxima possível do espaço. O contraste absoluto. O branco da tela e do papel onde a impressão irá marcar a imagem que ela, pacientemente, estrategicamente, faz aparecer. Faz aparecer como víscera, identidade, como modo de alguém ser o que é. Essa é Magliani: ela é sua gravura. Ela é sua pintura. Ela é ela. Atrás de tudo isso, a elaboração. Cada goiva enfiada na placa revela uma experiência de vida. Cada passada de pincel pela tela uma afirmação: sou o que sou. Mas qual o preço que se paga para manter essa afirmação? Podemos dizer que Magliani paga o preço de ser com sua própria vida, para continuar sendo o que é: artista! O que é o artista? O artista é o fora incrustado na linguagem. Como uma craca, como uma marca indelével, áspera, dura, incômoda. Quando todos tendem a ser apenas estar, consumir, passar, Magliani grita e berra, NÃO! E continua sua longa pesquisa, tendo por companhia os fantasmas do expressionismo e as sombras pesadas e frias de sua formação no sul do país. Ainda que trabalhando bem no meio de Santa Teresa! Neste caminho sem fim,costuma sempre ouvir o eco da mesma frase: “nunca mais!”
    Xilogravura de Magliani, em exposição no Estúdio Dezenove

    Nesta série, no entanto, o que aparenta ter acontecido é que, de repente, o ninguém de ontem, o retrato do anônimo bestificado que ainda conservava cor, ao se perder de seus sentidos, perdeu, também, o sentido de ser retratado. Não é mais o rosto deformado e sem expressão o que se apresenta. Há um afastamento disso, também. Aquela aparente ausência de 'alma' ainda lhe dava presença. E Magliani, ao trocar o rosto de ninguém por um bule amassado, por um pano enrolado, ou outra coisa qualquer, nos faz pensar sobre a condição imposta não mais ao tolo, ao imbecil, mas a todos nós. Pois há em todos nós o dilema que é o de não ter como fugir e, ao mesmo tempo, não poder deixar de correr. É uma ironia, porque não se trata mais questionar o indiferente com as ferramentas da diferença, mas em saber que, de alguma forma, estamos sempre a um passo de nos tornarmos aquilo que nunca poderemos ser. Somos perseguido pelo fim, mas só podemos perceber isso por uma relação de sensações de proximidade e distância e nunca pela real efetivação de tal encontro. Talvez, por isso, o título dado por Magliani a esta série: procura-se.

    Preto e branco é o trágico. A tragédia nos humaniza. E a arte de Magliani é endereçada a todos que estão cercados no meio de uma montanha de coisas, objetos, acúmulos. E essa sinalização é indicada por passagens que não podem se fixar mais nas representações e, menos ainda, na pureza das abstrações. São evocações, talvez, de mundos em trânsito que não se comprazem em revelar uma moral ou uma estética, mas o indizível.


    Rubens Pileggi Sá
    Artista e professor da Faculdade de Artes Visuais da UFG


    MARCOS CARDOSO - O artista do acaso

    Coração Viciado, obra de Marcos Cardoso

    Isso no momento inicial, no passeio aleatório a cada manhã, em busca do achado no chão: resto do resto: guimbas. Depois o ateliê. O pensamento. A ordem.Os enxames arrepiados desenham o espaço em armações de cigarros (o farelo do fumo contido nos cilindros pequenos), flores-do-mal espetam o olho.

    Que magia estranha dirige seu passo?Que segredo oculto tem seu olho que olha as sombras do mundo e inventa o poema? Marcel Duchamp foi enfeitiçado para sempre por Raymond Rossel com a peça delirante "Impressions d'Afrique. Marcos Cardoso metamorfozeou-se pelo mito do carnaval e suas máquinas: reciclou pó e pano em palácios e castelos, faz-de-conta sem fim, hoje pura linguagem nobre mergulhada no sensível, no sonho do alquimista que engendra transtornados objetos arfantes.

    Cada enxame respira seu ar exaurido e expande-se em sinuosas serpentes: ou mantos pesados-delicados, ou estrela-do-mar, ou corações entrelaçados de charutos, materiais que são o que não são.

    Simulacros que tornam verdades, não alegorias no encanto das invenções "à vera".

    A cola une pacientemente guimba após guimba, dos montes acumulados, em encaichoeiradas fagulhas, bocas de batom, lampejos vermelhos, rubros de bocas-beijos largados.

    Perfumes exalam o espaço.

    Ninguém ousou tão longe.

    Que perdidas sensações ocultam-se dos tubinhos pisados pelo pé passante?

    Nada importa.

    De dentro deles sopra leve delírio de organizações frágeis prestes a demolirem-se mas que resistem nos suportes que os prendem em formas às paredes e / ou então caem e abrem: como leques em abraços afetuosos de mil bocas anônimas que tocaram levemente seus bordos, sugaram seu ar enfumaçado, argolas de vento subindo para o alto.

    Nada mais existe.

    Somente o tubinho semi-oco, semi-vicio.

    Toque de amor, memória, esquecimento.

    Agora, objeto claro, justo, voz e som, sussurro de bocas abertas, metáforas de vida.

    Objetos novos. Surpreendentes. Máquinas de arte.


    Ligia Pape



    ARTE GARAGEM - Nas Trincheiras da Arte

    Gian Shimada
    Em sua estratégia móvel de realização o Arte Garagem é um projeto que surgiu e permaneceu na instância de experimentações poético-visuais na cidade de Petrópolis organizada por artistas locais que queriam expor sua produção. Esta iniciativa, de objetivos mais imediatos, revela, entretanto, a condição crítica em que se encontra o sistema de arte no Brasil. Não é difícil entender porque fora do eixo das capitais economicamente mais fortes o circuito das artes é iniciativa praticamente relegada às trincheiras de ações particulares.

    Uma breve reflexão sobre os meandros fronteiriços da arte indicaria por certo uma crise de todos os seus elementos compositivos deixando a visão embaçada e sem chances de distinguir com exatidão seus limites. Nesse embate que o artista passa a travar ele mesmo diante das tantas lacunas percebidas no seu caminho é que surgem resistências nos moldes de uma guerrilha: ataques rápidos e pontuais em mostras que se renovam como ideia e atitude a cada realização.

    Sidney Piccoli
    Idealizado pelos artistas Rosa Paranhos e Claudio Partes o Arte Garagem, em sua oitava edição, é um exemplo de vigor que vem criando zonas de contato com outros circuitos convidando artistas de fora de sua região para integrarem o evento bem como ampliando sua atuação também em espaços públicos. Esse ano o evento se repete nos porões do Palácio Rio Negro reunindo 23 artistas, 8 deles do Rio.

    É possível visualizar futuramente este movimento ganhando as ruas da cidade ampliando seu leque difusor e alcançando um número ainda maior de espectadores.

    A essência da luta está em vencer a si mesmo.


    Arte Garagem 2012
    Período de Exposição: até 29 de Julho 2012
    Local: Palácio Rio Negro, Centro - Petrópolis
    Funcionamento: de quinta a domingo das 10 às 17h


    Osvaldo Carvalho
    Artista visual, curador independente e mestre em poéticas visuais pela ECA-USP