sexta-feira, 17 de agosto de 2012

BISPO DO ROSÁRIO II - Fé, Criação e Glória

continuação da parte I

Bordar, juntar, desfiar, consertar, pregar, sobrepor, ocultar, corrigir, escrever, desenhar, dizer através do visível. Tudo era uma única sutura de ser. Por isso, sua obra, por mais visual que fosse, é mais do tempo do que do espaço, como a poesia e a música. Em sonho e realidade, é sempre um objeto de arte que seduz o olhar do público e desperta curiosidade até os dias de hoje. Com esse pensamento, o artista desenvolveu uma nova linguagem de realizar e pensar a pintura. Seus objetos são verdadeiras “novas” pinturas com pigmentos, já tingidos pelo tempo, em fios desfiados. É deles que o artista se apropria como matéria e técnica para expressar sua morada, desenvolvendo uma maneira de colocar sua atitude e ação dentro do seu próprio mundo.

Arthur Bispo do Rosário executou o conjunto de sua obra com a linha que ele mesmo desfiava de uniformes de internos da Colônia Juliano Moreira. O mesmo azul amplamente prevalecente no conjunto monocromático dos objetos de fio do artista, o mesmo azul do manto do Menino Deus e dos estandartes das procissões religiosa de sua terra natal, que estão presentes em suas lembranças de infância, em bordados realizados pelos homens da Japaratuba (Cidade do Estado de Sergipe, região Nordeste do Brasil).

Nos tetos das igrejas barrocas brasileiras, há um azul só visto aqui nas pinturas de mestre Manuel da Costa Ataíde. Tudo isso faz muito sentido nas nuances do “Azul Bispal”. Bispo é completamente barroco, só trocou o “Dourado” que representa o poder, e a hierarquia dos “Homens e da Igreja” pelo seu azul desfiado, azul revestido e azul vivido no seu tempo e no seu caminho. O “Azul” que representa a pureza, o infinito, um mundo como um Céu. É como chegar ao paraíso sendo acariciado por véus de ar.
E não podemos esquecer do “Azul” de Yves Klein, como escreveu o crítico de arte Paulo Herkenhoff em seu texto no livro “Arthur Bispo do Rosário, Século XX”. Klein considerava que “a monocromia é a única maneira psíquica de pintar que permite atingir o absoluto espiritual”. O artista francês não teve passagem por nenhum hospício, sempre foi artista, com o seu azul patenteado por ele. Esse azul...

“Eu adoro o azul de Bispo do Rosário porque o azul é uma das minhas cores. Fiquei fascinada ao saber que a linha azul que ele usava vinha do uniforme de seu hospital psiquiátrico. Ele tinha a capacidade de incorporar um objeto da sua vida de confinamento e transformá-lo num objeto simbólico de sua auto-expressão, mistério, beleza e liberdade”. Louise bourgeois.

Sua obra tem um olhar feminino, mas não por causa dos bordados, mas porque está dividida em três partes: a Arte, que define seu compromisso de realizar e deixar esse conjunto de objetos; Nossa Senhora, o lado religioso que sustenta seu caminho para criar; e, por fim, as estagiárias de psicologia que estiveram sempre presentes em suas criações: uma forma de seduzir com o seu encanto e magia essas jovens senhoras, principalmente Rosangela Maria, presente em um conjunto importante de objetos de Bispo dedicados a ela. Um amor não correspondido ou platônico. Entre o sono e o sonho, Bispo sabia muito bem seduzir.

Com isso, ao olhar a obra do artista, o sensível surge como a primeira forma de relação com o outro, estabelecedor das igualdades versus diferenças, estilos versus modismos ou regras.

Quando olhamos para alguém, limitamos, pelo exercício do olhar, a sua liberdade do fazer. As diferenças são o fundamento das políticas atuais, mas nunca estão presentes, nem na sua totalidade, nem diretamente. As diferenças irrompem nos seus efeitos, na criação, nas paixões, nos conflitos, mas, ainda assim, permanecem escondidas por trás de convenções, que velam e protegem todos estes elementos. A arte contemporânea tende mais a centrar-se nas urgências do tempo presente do que em critérios, formas e estéticas. Nada do que existe é estranho. Tudo lhe serve de matéria e ação. Sem diferenças, limites, esse é o pensamento de criação de Arthur Bispo do Rosário, que fez brotar e ainda brota em tantas vidas do nosso cotidiano.

Essa poética referente à obra de Bispo requer um exercício para além da linguagem visual. Nesse campo de descoberta, encontrei nos seus objetos a mais forte e fundamental aliada para nos aproximarmos de seu imaginário de sonho e realidade.

A queda dos sete anjos transformou Arthur em Bispo do Rosário. Essa poderosa imagem religiosa despenca sobre esse homem, dando-lhe pretexto e contexto para a realização de sua “obravida”. Por meio de seus estudos, bordados, arquivos, imagens, conceitos, atitudes e memórias, sua arte subverte a medicina, a religião, os modismos e as escolas de arte. Sua obra é sua segunda pele, poética, de poder e proteção, uma construção visceral que aguça os sentidos. Uma realidade de “pele” produzida artificialmente por ele e que transita com absoluta naturalidade no território da criação contemporânea. Dela, extrai sua força, recebe intensos deveres e prazeres, mas também é fonte de angústia. Bispo é a prova real de que o homem pode criar, não importa as dificuldades técnicas ou materiais, sua individualidade, identidade ou história pessoal.


Matéria 2 de 3. Continue lendo: Bispo do Rosário - parte III


Wilson Lazaro
Curador Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea-MBR AC


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