sexta-feira, 27 de abril de 2012

MEMÓRIA - O Centenário da Casa da Flor

Há cem anos, um jovem de vinte anos, pobre, negro e analfabeto decidiu construir uma casa para se isolar da família – pais e onze irmãos. Gabriel Joaquim dos Santos, nascido em São Pedro da Aldeia, no estado do Rio de Janeiro, queria ter liberdade para dar vazão à sua grande criatividade. Gostava, nessa época, de desenhar, de fazer flores de papel crepom, de modelar no barro os santos de sua devoção. Tocava harmônica. Construiu um pequeno altar de onde saíam procissões organizadas por ele. Foi, a partir de 1912, erguendo aos poucos seu novo lar, ao lado da casa de seus pais: um pequeno quarto, uma salinha e um depósito. Sem recursos para adquirir o material necessário para a obra, levou mais de dez anos para concluí-la.
Em 1923, teve um sonho: nele visualizou um enfeite na parede de seu quarto. Espantado, mas resolvido a concretizar a imagem sonhada e desprovido de recursos para a empreitada, chegou à conclusão de que o único jeito era catar nos montes de lixo ao redor objetos quebrados e jogados fora como imprestáveis para o uso mas que serviriam para seu propósito. Não parou mais: durante sessenta e três anos garimpou pedaços de coisas abandonadas: lâmpadas queimadas, ossos, conchas, cacos de louça e de azulejos, pedaços de cerâmica. Com esse material inusitado para a época – hoje já é comum o uso desse tipo de material para reciclagem- criou mosaicos, mandalas, esculturas. Decorou todas as paredes internas e externas e um muro que levantou para a sua proteção. Flores em profusão deram um nome a seu lar: “Casa da Flor”. Durante a maior parte desse período sofreu com o estigma da loucura: todos o estranhavam, mas isso não foi empecilho para sua criação: foi extremamente honesto e autêntico em sua produção artística. Faleceu aos noventa e dois anos, praticamente cego, mas até o fim trabalhando em seu “monumento à pobreza” .

Com um também obstinado trabalho, a Sociedade de Amigos da Casa da Flor, crida em 1987, conseguiu recursos, em 2001, para a restauração que se fazia urgente, dos enfeites do telhado e do muro. A Casa da Flor voltou, então, à sua beleza anterior. Hoje, porém, passado onze anos, já surgiram defeitos e problemas em sua estrutura, que tem que ser refeitos. A associação, hoje Instituto Cultural Casa da Flor, conseguiu aprovar na Lei do ICMS/Secretaria de Cultura do Rio de Janeiro três projetos que pretendem a preservação e a divulgação desse patrimônio cultural fluminense: a publicação de um livro, uma obra de restauração e a finalização de um documentário de 30 minutos. Estamos, porém, à espera de patrocinadores. A urgência para a realização dos três projetos resultam da necessidade de se salvar do esquecimento uma obra belíssima da arquitetura espontânea em nosso País e também a memória de um dos maiores artistas brasileiros, opinião compartilhada por vários intelectuais que se deslumbram com sua beleza, como Ariano Suassuna, Ferreira Gullar, Carlos Byington, Alcides da Rocha Miranda, Affonso Romano de Sant´Anna, Paulo Coelho, Lélia Coelho Frota e a o uruguaio Eduardo Galeano.

Torna-se indispensável preservar do esquecimento essa história de paixão, coragem e singularidade. E persistência! Compreender a história da criação da obra-prima da arquitetura espontânea em nosso país mas, também, principalmente, saber sobre a vida de Gabriel são fundamentais para se compreender o que é arte, a forma mais bela da capacidade humana. Sua casa é um verdadeiro ato de paixão: cada flor de pedra, uma oferenda, cada bordado, a expressão manifesta do amor, de um grande amor transcendental. A Casa da Flor e o seu coração que pulsa ardente e amoroso!

Em seu discurso, falava de prazer que tinha, à noite ao acender o lampião da salinha e ficar admirando sua criação: “Quando eu acendo o lampião e vejo tudo prateado, fico tão satisfeito! Todo caquinho transformado em beleza! Eu mesmo faço, eu mesmo fico satisfeito! Me conforta!.”

Gabriel possuía, sem dúvida, a autenticidade, a honestidade inerente ao verdadeiro artista. Viveu mergulhado em si mesmo, nas profundezas de seu sonho e de sua fantasia. E mostrou, com sua única obra, que é possível fazer poesia na arquitetura! Os belos ornamentos da Casa da Flor são, na verdade, os reflexos luminosos de uma alma poética e corajosa!

“O futuro pertence à aqueles que acreditam na beleza de seus sonhos!.

Para saber mais: www.casadaflor.org.br



Amelia Zaluar
Pesquisadora, professora e membro da Sociedade de Amigos da Casa da Flor


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